Não existe benefício no rastreio de fibrilhação auricular

 

 

Pergunta clínica: Existe benefício no rastreio de fibrilhação auricular em pessoas com ≥ 65 anos, nos Cuidados de Saúde Primários?

População:  pessoas com ≥ 65 anos
Intervenção:  realização de ECG de derivação única
Comparação: cuidados habituais (usual care)
Outcome (primário): novos diagnósticos de fibrilhação auricular ao longo de um ano de seguimento

Desenho do estudo: Ensaio clínico randomizado controlado financiado pela indústria farmacêutica, em que foram aleatorizadas 16 clínicas de cuidados de saúde primários para o grupo de realização de rastreio de fibrilhação auricular, usando um ECG portátil de derivação única, durante uma consulta de rotina ou para o grupo de cuidados habituais. As clínicas comparáveis foram emparelhadas e, em seguida, uma clínica de cada par foi selecionada aleatoriamente para fazer parte do grupo de rastreio, por forma a aumentar a comparabilidade entre os grupos. Os utentes incluídos tinham idade ≥ 65 anos. O marcador (outcome) primário foram os novos diagnósticos de fibrilhação auricular durante o acompanhamento de um ano.

Resultados: Foram incluídas 15,393 pessoas no grupo de rastreio e 15,322 no grupo de controlo. Ambos os grupos eram semelhantes em termos de características demográficas, sinais vitais e comorbilidades. Foi efectuada uma análise segundo a intenção de tratar. 72% dos pacientes do grupo a quem foi oferecido o rastreio, efectivamente realizaram o rastreio. No final do seguimento de um ano, não se verificou diferença entre os grupos em relação a novos diagnósticos de fibrilhação auricular (diferença de risco [RD], 0.13% [IC 95%, -0,16 a 0,42]; P = 0,38). Também não houve diferenças entre os grupos em relação à probabilidade de ser iniciado um anticoagulante de novo. Numa análise post hoc nos pacientes com ≥85 anos, os autores encontraram uma probabilidade significativamente maior de diagnóstico de fibrilhação auricular no grupo de rastreio (5.56% versus 3.76%, respetivamente; diferença de risco [RD], 1.80% [IC 95%, 0,18 a 3,30]).

Comentário: Sabemos que uma fibrilhação auricular não diagnosticada pode levar a desfechos prejudiciais ou até fatais evitáveis. Em 2017, a revista “Circulation” publicou um artigo patrocinado pela indústria farmacêutica, que defende o rastreio da fibrilhação auricular em pessoas com ≥65 anos. Contudo, no estudo descrito anteriormente, os autores não encontraram qualquer benefício nesse mesmo rastreio em consultas de rotina nos cuidados de saúde primários. Há́ vantagens potenciais, mas também desvantagens ao detetar uma fibrilhação auricular previamente não diagnosticada através de rastreio. Segundo as recomendações da ESC 2020, o rastreio de fibrilhação auricular tem um nível de evidência B. Já a USPSTF atribuiu em 2022 um grau de I (evidência insuficiente) para o rastreio de fibrilhação auricular em adultos assintomáticos com 50 ou mais anos. Nesse sentido, devemos ser críticos no momento de rastrear e (sobre)medicar, principalmente em utentes com ≥85 anos, nos quais é difícil de manter o equilíbrio entre o prejuízo e o benefício da instauração de terapêutica anticoagulante.

Artigo original: Circulation

Por Daniela Macedo Gomes, USF Serra da Lousã

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