NNT – número necessário tratar

Episódio 1

– São as anginas senhor doutor.

O médico conduz a entrevista e faz o exame físico. Uma provável infeção vírica, pensa. Tudo aponta para isso e explica à consulente.

– Não me faça isso doutor. Eu preciso sempre de antibiótico.

Episódio 2

– Venho à consulta de rotina doutor… fazer umas análises.

A consulta prossegue. O médico entrega a requisição de análises e faz a marcação da consulta, quando é interpelado pelo consulente.

– O doutor esqueceu-se do PSA. O outro doutor pede sempre.

 

Estes resumidíssimos excertos de episódios de consulta do quotidiano de um médico de família, pretendem revelar a complexidade que emerge da relação médico-consulente. Mas para perceber essa complexidade e identificar os mitos escondidos é preciso conhecer a verdade dos números. A verdade que muitos não conhecem, muitos não querem conhecer e muitos recusam-se a conhecer. Uma verdade que o livro “Hippocrates’ Shadow”, do autor David H. Newman, põe a descoberto, com título traduzido para português “Onde falham os médicos”. Uma tradução errada, pois o livro revela a complexidade de uma sociedade com todas as suas fragilidades que se transmitem à relação entre médicos e consulentes. Mas estamos em Portugal e opta-se por uma tradução que vende…

Neste livro li coisas que confrontam a minha prática clínica. Axiomas que me foram ensinados, que agora se encaixam mais em pseudo-axiomas. Vamos a alguns números e factos, que analiso com recurso a este livro.

Newman disserta sobre o “Número Necessário Tratar”, ou seja, NNT – “O NNT mede o impacto de um medicamento ou de uma terapia calculando o número de pacientes que necessitam de ser tratados para que esse medicamento ou terapia tenha impacto sobre uma pessoa.” A sua descrição no livro é simplesmente brilhante pelo que aconselho a leitura aos interessados em saberem mais.

Perante uma dor de garganta, coloca-se a questão do diagnóstico. Para além das vicissitudes deste diagnóstico, ponderaremos que o médico assume que está perante uma faringite estreptocócica. Como tratar? Neste caso os antibióticos têm apenas como objetivo a prevenção da febre reumática.

“…determinámos que seria necessário tratar aproximadamente um milhão de faringites estreptocócicas para impedir que uma única pessoa contraísse a febre reumática”.

Com apenas esta informação, podem responder que é melhor prevenir… mas analisemos os efeitos adversos potenciais da toma de antibióticos.

“Por cada caso de febre reumática que se evita ao tratar um milhão de pessoas com antibióticos, provocaremos também uma estimativa de 100 000 casos de diarreia, 100 000 casos de erupções cutâneas e 100 000 infeções por fungos. E mataremos 420 pessoas”.

E agora, como terminaria o episódio 1 num mundo perfeito?  

E o que nos diz o PSA? Essa análise que todos os homens querem fazer, porque conhecem alguém que tem cancro da próstata ou conhecem alguém que faz este exame todos os anos ou simplesmente porque sempre fizeram esta análise. Numa tabela exposta no livro pode-se verificar o seguinte:

“PSA, para prevenir a morte em geral ou a morte por cancro da próstata – nenhum benefício.”

E mesmo assim queremos fazer. Mas será que sabemos tudo? Não me vou perder em números neste ponto em específico, apenas colocar algumas questões. Perante nenhum benefício, quantos falsos positivos, biópsias, cirurgias, incontinências, disfunções erétil, achamos ser aceitáveis? E então, como terminaria o episódio 2 num mundo perfeito?

De facto, são inúmeros os contextos em que a medicina não é coerente. E os médicos não são os únicos responsáveis e toda a gente sabe isso, mas é mais fácil apontar o dedo. Mas estes têm um papel importante. O mais fácil e mais rápido é passar uma receita com o antibiótico ou uma requisição com o PSA. Não me recuso a faze-lo, mas o consulente deve estar informado. Nós devemos estar informados. E se a pessoa decidir de forma informada que quer fazer o exame ou tomar o antibiótico, então…

Em alguns casos, o risco para o utente suplanta os benefícios, e como médico não me permito a perpetuar determinada intervenção. Todos deveríamos agir desta forma e em muitos casos não deveríamos ser confrontados com um “o outro doutor pede sempre”.

Na prática atual teremos tempo para explicar tudo o que sabemos e não sabemos aos consulentes? Deveríamos ter. Aumentam o número de utentes, reduzem o tempo de consultas, aumentam as evidências (ou a falta dela), aumentam os interesses comerciais na saúde. E no final quem perde somos todos nós. 

Uma coisa é não ter a informação. Outra, totalmente diferente, é estar informado e não querer saber…

Philippe Botas

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