O destruidor de sonhos




Quando somos jovens fazemos planos. Vemos para além, vemos o futuro. O calor do verão faz com que imaginemos cenários e investamos para os concretizar. Porém também tomamos como garantida uma vida longa que permita que se tenha o tempo necessário para realizar todos os projectos.

Mas, um dia, só porque sim, porque já fazia muito tempo e nunca é demais estarmos atentos, decide-se ir ao médico. “Só naquela”, fazer um “check-up” para saber se está tudo bem. O médico, solícito, faz o que lhe compete: observa o corpo e complementa a sua avaliação com algumas perguntas: “você faz exercício?”, “come bem?”, “fuma, bebe, toma drogas recreativas?”, “é do Benfica?” e, por fim, conclui a consulta com a prescrição de alguns dos chamados “exames de rotina”.

A pessoa sai do gabinete satisfeita. Se estiver tudo ok vai casar, vai fazer aquela viagem há muito pretendida, vai roubar um banco ou arranjar um crocodilo de estimação. Não importa o tipo de sonho, é-se jovem e temos a toda a vida pela frente.

Pouco tempo depois, o médico recebe um dos exames com um recado a solicitar uma leitura mais urgente. O técnico era um ser bom até abrir aquele envelope, a partir daquele momento transforma-se: agora é o “destruidor de sonhos”.

O destruidor de sonhos é aquela personagem que surge subitamente na vida de alguém para dizer que esqueça tudo o que havia planeado porque agora tem uma nova missão. É como aquele oficial que vai à casa do mancebo dizer que tem de dar o corpo às balas numa qualquer guerra. O destruidor de sonhos geralmente surge quando se está à espera de um filho ou de ser promovido ou, ainda, de ver o seu clube do coração ser campeão pela primeira vez nos últimos 18 anos. Não bate à porta, não pede licença, não respeita autoridades. Mas, verdade seja dita, costuma ser democrático, não poupando estatuto social, raça ou credo.

A pessoa é chamada com alguma pressa ao gabinete médico. É nesse momento que aquela imagem paradisíaca, tal wallpaper que enfeita o desktop do computador, altera-se. Começa a partir-se um pouco pelas pontas. “O que poderá ser tão urgente para uma chamada do médico? Eles até demoram séculos para marcar consultas!”, pensa o indivíduo.

O agora eventual doente senta-se à frente do destruidor de sonhos que apresenta uma cara algo desprovida de sentimentos. Parece maquinar um discurso que deveria estar pronto antes do encontro. O clínico entra titubeante no diálogo e, às voltas, como se ao fundo tocasse uma triste valsa, expõem o problema ao sonhador. Se perguntar ao destruidor como transmitiu a notícia ele vai dizer que não se lembra; “cada doente é um doente”, dirá, para que se não se perceba do incómodo de toda a situação.

Depois do curto discurso, o médico cala-se, respeitando o fácies incrédulo e as lágrimas do seu interlocutor. Porém, neste momento, tem de elaborar um discurso encorajador, o que não é tarefa fácil já que não lhe foi ensinado na faculdade…

Quando me disserem que sou bem pago, que tenho regalias, que o meu trabalho não é de desgaste rápido, vou sugerir tomarem o meu lugar de destruidor de sonhos, que permaneçam firmes, impávidos perante a repentina desgraça alheia. Talvez a tacanhice dos comentários se lhes desapareça num repente.

Por Cláudio Carril



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