O Médico de Família acabou?

 

 

Em 3 de Agosto de 1982, foi publicada a carreira de clínica geral, complementada pela especialidade de Clínica Geral, por via de internato ou programa de formação específica (ainda que uma conceituada dirigente sindical federativa hospitalar considerasse que a clínica geral era uma carreira e não uma especialidade), e que passou a ser designada especialidade de Medicina Geral e Familiar pela Ordem dos Médicos em 1992.

Durante dezenas de anos, o clínico geral recebeu formação complementar em Medicina de Família (muito desactualizada, mesmo na época), e desde 1987 passou a haver também formação pré-graduada em Medicina de Família (actualizada desde 2010), aproximando-se da designação atribuída pela Ordem dos Médicos.

Para o poder político, foi muito importante a criação do médico de família, como ainda hoje se vê, quando se refere como desígnio governativo a atribuição de um médico de família a cada português.

Aproveitando-se da figura legislativa que estabelecia o atendimento da lista de utentes por família(s), tornou-se consensual para o poder e gratificante para o médico ser chamado médico de família, até porque estava de acordo com a (relativa) formação que foi obtendo e o creditava como médico de proximidade junto das pessoas e das famílias.

Na verdade, para ser médico de família (e não apenas médico geral), é necessária formação através da famililogia (estudo da família) e da familisofia (ciência da família), que foi sendo obtida em teoria, muito menos aplicada na prática clínica.

Com o advento das USF e a criação de indicadores, foram ignorados e desprezados os indicadores de saúde da família, privilegiando-se os indicadores em medicina geral (acesso, produtividade, grupos alvo).

Aos decisores, na verdade, interessam os indicadores económicos, traduzidos pela restrição da prescrição clínica farmacológica (menos frequente e a baixo custo) e da requisição de exames auxiliares de diagnóstico (duvidosamente racional).

Obviamente, para os médicos (chamados médicos de família), remunerados abaixo da mais valia da sua qualificação, especialização e influência na comunidade, passou a ser relevante a subvenção pessoal e institucional pelos serviços prestados através dos indicadores e compromisso assumido.

Assim, tornou-se imperioso o cumprimento dos indicadores de desempenho (independentemente do grau de fidedignidade e mecanismos de verificação, aferição e controlo), sem “espaço” para a Saúde da Família (por falta de tempo e não classificação em retribuição pecuniária).

Por razões estratégicas panfletárias, impacto economicista e controlo da classe médica dividida, o poder político, em governos sucessivos, tem mantido a situação conveniente (até discriminatória entre os médicos, e entre as especialidades médicas).

Foi criada até a figura e conteúdos do enfermeiro de família (que aplaudo), mas que não passa, à data presente, de uma experiência /projecto piloto, e não de graduação em formação pré-graduada, específica e / ou complementar (como no caso dos médicos), chegando a publicitar-se “médico/a e enfermeiro/a de família” e não “médico/a de família e enfermeiro/a (de família, quiçá).

A divergência e a conflitualidade entre o perfil profissional dos médicos e dos enfermeiros, expressos pelas respectivas Ordens e seus departamentos é evidente, sendo ultrapassadas quando as equipas de saúde funcionam como tal, por vezes com delegação de competências (apropriada?), sempre com usufruto económico bilateral.

Temo que a COVID-19 tenha sido a machadada final no médico de família, ao promover e querer dar continuidade ao “teletrabalho” no rescaldo da pandemia (que significa neste caso priorização de contactos telefónicos e realização de actos burocráticos), esquecendo a relação médico-doente, acto central da Medicina e da saúde, em vias de ser património imaterial da Humanidade.

Por outro lado, relega-se para segundo plano (além dos “olhos nos olhos”), o exame objectivo do doente, que fornece indícios ou pistas essenciais para o diagnóstico e terapêutica / plano de cuidados.

Ser médico, seja por missão ou apenas profissão, é ser pela Medicina Baseada na Evidência e pela Medicina Baseada nas Necessidades das Pessoas (OMS).

O médico geral voltou, o médico de família acabou? Ser médico de família não é ser telefonista, administrativo ou economicista, prioritariamente, para gáudio dos decisores. É ser médico da pessoa e médico da família, aplicando o conhecimento científico em Saúde da Pessoa e Saúde da Família.

Por Hernâni Caniço

 

 

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