O meu umbigo




O ser humano é solidário por natureza. Bondoso e altruísta. Sempre preocupado com o outro. Põe os seus interesses em segundo plano para ajudar os que mais precisam. É tolerante e respeita a liberdade dos outros. O ser humano é um exemplo de integridade, honestidade e humildade. Não há no mundo outra espécie com todas estas características tão peculiares. 

Qualquer um de vós, a ler estas palavras, mesmo que acredite e conheça alguns bons exemplos, percebe o exagero, até mesmo a hipocrisia desta descrição. Agora sendo realista, sabemos que somos tudo, algumas vezes isto, mas muitas vezes o oposto. 

No meu dia-a-dia de atividade clínica, como médico, observo cada vez com menos surpresa a incoerência e o egocentrismo das pessoas. Estas características são peculiares de todos nós, como pessoas que somos e fazemos. Em contextos similares podemos ser influenciados por coisas tão discretas como o nosso humor e ser bastante incoerentes. Agora que estou a escrever estas palavras, estou a refletir se não estou a exagerar. Acho que não, funcionamos mesmo assim. O que nos resta é tentar ser ponderados, agir de forma mais precisa e corrigir as nossas falhas. Sim, todos nos falhámos (desde já as minhas desculpas para este segredo que vos revelo, principalmente para aqueles que não erram e não pedem desculpa). 

Isto não significa que somos maus ou que não prestamos. Muito pelo contrário, isto é o que nos torna tão únicos. Mas não podemos manter os olhos fechados, assobiar para o lado e esperar que as coisas fiquem no esquecimento. 

Falemos de coisas concretas que me perturbam porque o caminho não pode ser este. Como médico pretendo estabelecer uma boa relação com os meus utentes. Profissional mas cordial. De facto o meu objetivo é responder com uma solução para os assuntos que me colocam. 

Então porque que raio (utilizo esta expressão conscientemente) tenho que lidar diariamente com burocracias que minam de forma irreversível os laços que se criam em anos de interação. O médico de família é a solução última de inúmeras personalidades, a citar: 

– Médicos que dizem ao utente para pedir este ou aquele exame ao médico de família e ainda reforçam que “se ele quiser pode ser que passe”. Caros colegas vocês conhecem a lei, não se façam de ingénuos.

– A personificação das “baixas” que indica sempre o médico de família como alguém que se não emite este documento é porque não quer. Será que na própria entidade não conhecem os documentos que elaboram sobre a matéria? Recomendo que se atualizem e leiam os próprios manuais.

– A personificação de “juntas médicas” e “seguradoras” que indicam ao utente para se dirigir ao médico de família para pedir mais um relatório. Os vossos médicos não sabem interpretar os exames e queixas que os utentes vos apresentam?

– A personificação das “cartas de condução” que é um dos expoentes máximos da melhor forma de complicar a atividade do médico de família. Na minha opinião e experiência pessoal, vejo este procedimento como algo que não deveria ser competência do médico de família, mas sim de departamento clínico constituído para este efeito. Como médico de família já tenho atividade que ocupa mais do que as 40 horas de horário laboral. Quantas vezes faço horas extra para tratar de papelada. Horas que não são reconhecidas. Já agora um pensamento para refletir. Porque será que se chegar 5 minutos além de hora de entrada poderei ser penalizado e as vezes que saio 1 ou 2 horas além do horário previsto, que fica devidamente registado no tão aclamado registo biométrico, simplesmente é esquecido por quem de direito. 

Continuando na saga das cartas de condução, é com isto que temos que lidar, se não quisermos fazer de conta: sou recente médico de família de utentes numa determinada região, ou seja, o meu conhecimento dos utentes, em muitos casos, é o mesmo que outro médico. A pessoa vem à consulta e diz “é só para pedir o atestado para renovar a carta de condução” ou então deixa este assunto para o último segundo da consulta. Centremo-nos nas circunstâncias que devem ser consideradas, nomeadamente o estado de saúde da pessoa e nos trâmites legais tão bem elaborados por alguém que conhece bem a realidade (ironia). Começa pelo facto de muitas vezes ser necessário parecer de médico que acompanha o utente em consulta por determinado problema de saúde, e persiste em problemas de saúde e medicação que podem condicionar a segurança da condução, o não registo de consultas em anos anteriores, na avaliação de parâmetros que não são possíveis no consultório sem instrumentos necessários (a avaliação oftalmológica determinada em documentos oficiais é simplesmente… bem nem tenho palavras. Pode ser que os cientistas que as elaboram possam explicar). Aliado a estes fatores, destaca-se a urgência que a pessoa tem em resolver esta situação porque não se apercebeu da data limite e o facto dos colegas de saúde pública se terem descartado desta função que na minha opinião poderia ser da sua competência. Mas o médico de família cala e consente. 

E agora, esta panóplia de “prioridades” do utente é resolvida de que forma? Da melhor forma que sabem, porque só faz sentido assim. A pessoa sabe que existe a consulta aberta e é assim que vai fazer porque o seu problema é mais importante do que a criança que tem febre há 3 dias ou o idoso que se sentiu mal. E o médico recebe o utente e percebe o motivo de consulta, tenta ser cordial e explicar qual a forma mais assertiva de resolver estas situações. Nunca sabe qual vai ser a resposta, mas sabe que as pessoas pensam que só têm direitos. E os direitos dos outros ficam em que ponto?

Para terminar, relato um caso que reflete o estado das coisas em que vivemos. Utente vai à consulta aberta para solicitar o dito atestado. Depois de breves palavras para explicar que a consulta aberta não é para este efeito, de forma ponderada procuro a melhor forma de resolver esta situação. Articulo com o utente as avaliações necessárias. Escassos dias depois, emito o atestado médico sem restrições. Alguns dias depois, o utente interrompe as minhas consultas, com comportamento desadequado insiste que me esqueci de colocar informação em como deve usar óculos. No meio de palavras e comportamento agressivo, explico que na avaliação que fizemos não tem indicação para esta restrição. Então percebo que alguém não médico decidiu colocar esta restrição e banalizar o atestado médico que emiti. Consultas atrasadas, humor destabilizado e burocracias para resolver. E ainda percebo o quanto ridículo é a situação quando do outro lado culpabilizam o utente porque este disse que usava óculos.

E com isto fico a pensar que é o jogo do faz de conta que domina. Faz de conta que tudo corre bem. Faz de conta que os direitos são para todos. Faz de conta que as coisas se resolvem onde têm que ser resolvidas. Faz de conta que as coisas funcionam bem. E no final o meu umbigo é mais importante do que o do outro. 

Por Philippe Botas





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