Sabemos que estás a trabalhar como Médica de Família na Dinamarca. Podes partilhar com os nossos colegas o teu percurso até chegar à Dinamarca? Onde fizeste o teu curso de Medicina e o internato de Medicina Geral e Familiar?
Terminei o meu curso na Faculdade de Medicina de Lisboa em 2007. Fiz o internato do Ano Comum no Hospital Distrital de Viseu e a valência de Medicina Geral e Familiar na USF Grão Vasco, que me acolheu de braços abertos. Durante esse período tive que tomar a decisão da especialidade médica a seguir. Confesso que a Medicina Geral e Familiar não era a minha primeira opção, sendo a Pediatria o meu grande desejo na altura. Mas os três meses na USF ajudaram-me a dar o passo nesse sentido. Já nessa altura a dificuldade da decisão encontrava-se entre escolher a especialidade de sonho na Madeira ou a Medicina Geral e Familiar, que era uma especialidade tão abrangente e tão próxima dos doentes e das suas famílias, o que me fascinava e me permitia ficar próxima da família e iniciar a minha própria. Por esse motivo iniciei no dia 1 de Janeiro de 2009 o internato de Medicina Geral e Familiar na USF de São Domingos, em Santarém. Esse ano foi um período de transição, em que me foi possibilitado escolher fazer o internato em 3 ou em 4 anos, como seria o próximo currículo a partir de então. Escolhi o percurso mais curto. Foram 3 anos intensos, de muito trabalho e muita aprendizagem, com o apoio incondicional da minha orientadora de especialidade.
Após o fim do internato de especialidade fui colocada numa extensão do Centro de Saúde da Chamusca, na Carregueira, até à realização do concurso para a colocação de médicos. Já nesta altura me encontrava a iniciar um projeto de formação de uma USF em Vila Nova da Barquinha.
Após dois anos de projeto senti que estava num círculo ininterrupto de utentes insatisfeitos, políticos insatisfeitos, uma equipa de trabalho que não tinha uma dinâmica facilitadora na melhoria das condições de trabalho e uma pressão enorme para conseguir atingir indicadores em detrimento da verdadeira medicina, que era aquilo que tinha escolhido como projeto de vida profissional. O tempo para a família era muito pouco e, com uma criança com 3 anos que passava muitas horas no infantário e outra a caminho, sentimos que a situação tinha que mudar.
A extensão da Carregueira era um meio pequeno, onde trabalhava em parceria com uma enfermeira e uma assistente técnica. Foram 5 meses extremamente agradáveis com utentes de uma zona rural, genuinamente simpáticos e muito agradecidos pelo facto de terem uma jovem médica a trabalhar naquela extensão. Recordo que pintaram a extensão como forma de agradecimento. Apesar de ter uma pequena equipa de trabalho, a enfermeira e a assistente técnica eram da zona e tinham uma grande proximidade com os doentes e as suas famílias, o que ajudou imenso uma jovem médica a trabalhar pela primeira vez sozinha. Mas o meu projeto era outro e por isso inauguramos a nossa USF em Vila Nova da Barquinha em Novembro de 2013. Era um projeto aliciante, com 3 colegas mais velhos e a minha colega e amiga com quem tinha feito o internato de especialidade. No entanto, desde o início que esse projeto enfrentou grandes obstáculos. Por um lado, a USF Barquinha manteve a estrutura física do centro de saúde de Vila Nova da Barquinha, um centro de saúde com três extensões, sendo que algumas delas estavam a 1 km de distância da sede, o que exigia constantes deslocações e perdas de tempo. Por outro lado, existiam doentes descontentes, com maus hábitos de utilização da unidade de saúde e uma política envolvente que de todo favorecia a situação. Após dois anos de projeto senti que estava num círculo ininterrupto de utentes insatisfeitos, políticos insatisfeitos, uma equipa de trabalho que não tinha uma dinâmica facilitadora na melhoria das condições de trabalho e uma pressão enorme para conseguir atingir indicadores em detrimento da verdadeira medicina, que era aquilo que tinha escolhido como projeto de vida profissional. O tempo para a família era muito pouco e, com uma criança com 3 anos que passava muitas horas no infantário e outra a caminho, sentimos que a situação tinha que mudar. O meu marido também sentia estagnação em termos profissionais e desejava evoluir. Nessa altura li um post de um colega da universidade que estava a trabalhar na Dinamarca. Entrei em contacto com ele e apesar de exercer numa especialidade hospitalar, ajudou-me a encontrar ofertas de emprego para médicos de família.
O motivo para atrair profissionais era o equilíbrio entre a vida profissional e qualidade de vida em termos familiares. Como é óbvio, fomos imediatamente atraídos por isso. Após alguns contactos, fui convidada para viajar até à Dinamarca com toda a família para uma primeira entrevista de emprego, que incluía uma apresentação das condições de trabalho e visita à futura clínica. Foi uma experiência extremamente enriquecedora, que ajudou à tomada da decisão. Seis meses depois mudei-me de malas e bagagens, mais duas crianças pequenas, para a terra dos Vikings. O contrato de trabalho incluía um curso de língua na Dinamarca, o que era uma diferença relativamente às ainda atuais ofertas para os países escandinavos, que incluem o curso em Espanha ou na Hungria, e que não me inspiravam confiança pela ausência de prática da língua na vida real. Considero hoje que foi a decisão acertada.
E foi fácil a aprendizagem do dinamarquês? Atualmente fazes mais consultas em dinamarquês ou inglês? Há quanto tempo estás a trabalhar na Dinamarca como médica de família?
Mudei-me para a Dinamarca em 2016. Felizmente estava incluído no meu contrato de trabalho o curso intensivo da língua dinamarquesa. Isso teve um grande peso na decisão. Os primeiros três meses do meu horário de trabalho foram exclusivamente para aulas de dinamarquês, num hospital com professores de dinamarquês, alguns dos quais ligados à área da saúde para que pudéssemos aprender os termos corretos desde o início. Ao fim de três meses fui literalmente lançada aos lobos, com consultas médicas 1 dia por semana. O tempo de aulas foi gradualmente diminuindo e aumentando a carga horária de trabalho na clínica. Se estava preparada? Claro que não, mas para os dinamarqueses há uma parte importante da cultura que incentiva o aprender com a prática e foi mesmo nisso que consistiram os primeiros meses. Não foi fácil adaptar-me a uma nova língua, uma nova cultura e um sistema de saúde cujo funcionamento é diferente do nosso. Hoje em dia trabalho quase exclusivamente em dinamarquês. Como estou numa zona balnear frequentada por muitos turistas, nas épocas de férias é muito comum falar também inglês e nalguns casos espanhol, tudo isto no mesmo dia.
Se em dado período tiver algum interno, dedico cerca de meia hora após o almoço para supervisão, isso a par de eventuais momentos durante o dia em que tal seja necessário. As consultas são de saúde de adulto, saúde infantil com contornos um bocadinho diferentes dos de Portugal, saúde da mulher, saúde da grávida (3 consultas por gravidez), visita domiciliária, consulta aguda.
Em que local em concreto estás a trabalhar? Que dimensão tem a Unidade de Saúde em que trabalhas? Tens uma lista de utentes? Ser médica de família na Dinamarca é diferente ou semelhante a ser médica de família em Portugal?
Estou a trabalhar na zona sul da península da Dinamarca conhecida como Jutlândia, numa pequena vila chamada Skærbæk, com cerca de 5500 habitantes. Ser médica de família na Dinamarca tem muitas semelhanças, mas também muitas diferenças, com Portugal.
Os cuidados de saúde primários centram-se no médico de família, que é sempre responsável pela orientação do doente seja em cuidados de saúde diretos, seja como referenciação aos cuidados de saúde secundários. O médico de família tem a responsabilidade de apoiar os seus utentes 24 horas/7dias por semana. Como isso não é humanamente possível, os médicos de família organizam-se e prestam apoio por turnos de 8 horas nos períodos em que as clínicas estão encerradas. O médico de família está sempre disponível 24 horas. Isso implica que, com a exceção rara da necessidade de intervenção de urgência com a chamada para o 112, o utente passe sempre por uma triagem médica. Desta forma evita-se o mau uso das urgências hospitalares.
Os médicos de família organizam-se em centros de saúde, mais corretamente clínicas que podem ser de um só médico ou de vários, com trabalho em equipa. Da restante equipa podem fazer parte secretárias clínicas, enfermeiras ou outros profissionais de saúde que os médicos – gestores dessas clínicas – considerem úteis. Os serviços são universais e gratuitos para os utentes. Os médicos têm aquilo a que poderia chamar ficheiro clínico ou carteira de clientes, que compram quando adquirem ou se tornam sócios de uma clínica. Uma pequena quantia por utente é paga pelo serviço nacional de saúde e tudo o resto depende dos serviços prestados, o que está previamente tabelado por negociação a cada 3 anos. Poucas tarefas são pagas à parte, estando relacionadas com actos burocráticos como preenchimento de atestados para seguros, cartas de condução ou atestados para a câmara municipal, que é quem é responsável pelo pagamento aos utentes de incapacidades laborais, entre outros.
Desse modo tenho um ficheiro de cerca de 3.800 utentes que partilho com outro colega. Juntos alugamos o espaço e pagamos as despesas inerentes ao funcionamento da clínica. Temos contratadas 3 secretárias clínicas, duas técnicas de laboratório responsáveis pela realização de análises, ECG, espirometrias e doppler (estas competências foram adquiridas após a formação, que os médicos entenderam ser necessárias) e ainda uma enfermeira, que tem também uma grande atividade laboratorial e é responsável pelo seguimento de diabéticos e hipertensos (bem controlados). Na comunidade temos equipas de enfermagem e de assistentes de auxílio à saúde, que prestam todo o apoio necessário aos nossos utentes, bem como aos de outras clínicas. Não tenho uma enfermeira ao meu dispor a trabalhar enquanto equipa de família, mas sei de casos de outros colegas que funcionam assim. As combinações são infinitas, dependendo do que a equipa de médicos gestores necessite. Este foi um grande desafio que tive que ultrapassar ao vir para a Dinamarca, já que tudo isto exige conhecimento de leis e economia, num país que não é o meu, para o qual não estava preparada – ou seja, adicionei o cargo de gestora/ empresária ao de médica. Mas com formação e um excelente trabalho em equipa, tudo se consegue.
Como é o teu dia de trabalho normal?
O meu dia inicia-se por volta das 7h30, altura em que começo por fazer a revisão de todas as análises, exames clínicos e notas de alta que chegam do hospital. Além disso respondo aos e-mails que os doentes me enviaram. Por volta das 8h00 início a atividade clínica, que termina às 15h00 num dia normal, ou às 16h00 no caso de ser eu a estar de atendimento a casos agudos. Temos uma pausa de 20 minutos a meio da manhã e a pausa de almoço de meia hora. Se em dado período tiver algum interno, dedico cerca de meia hora após o almoço para supervisão, isso a par de eventuais momentos durante o dia em que tal seja necessário. As consultas são de saúde de adulto, saúde infantil com contornos um bocadinho diferentes dos de Portugal, saúde da mulher, saúde da grávida (3 consultas por gravidez), visita domiciliária, consulta aguda. O médico responsável pela consulta aguda é normalmente responsável por avaliar os resultados de análises que vão chegando ao longo do dia e orienta-as para o médico que as requisitou, o mesmo se passando com notas de alta ou correspondência proveniente do hospital, das enfermeiras de apoio à comunidade ou do lar de idosos a que prestamos apoio. O meu dia termina no máximo após estas tarefas por entre as 15.30 e as 16 horas.
A cada três anos há uma negociação entre sindicatos e ministério da saúde em que são estabelecidos objetivos e indicadores da saúde. Um dos acordos vigentes é a referida responsabilidade do médico de família de apoiar os seus utentes 24 horas/7dias por semana. Se eu quisesse, entre uma a duas vezes por mês, teria essa função até ao próximo dia útil. Mas como a minha prioridade é estar com a minha família, cedo os meus turnos a outro colega que queira ganhar uma remuneração extra.
A tudo isto juntam-se as tarefas de gestão da clínica, tal e qual como se de uma pequena empresa se tratasse.
Em termos pessoais, sobretudo tenho tempo para estar com a minha família a partir das 16 horas, para ter hobbies e para poder usufruir de fins de semana livres. Considero que tudo isso compensa e me dá uma sensação de realização pessoal e profissional que não tinha antes de ter mudado de país.
Além da prática clínica, também estás envolvida em atividades de formação ou investigação?
Sou orientadora de formação de Ano Comum e do Internato de especialidade.
Todos os anos tenho ao meu dispor uma quantia fixa monetária que se encontra disponível numa bolsa para formação. Isto é conseguido através da contribuição de todos os médicos com o pagamento de cotas ao sindicato de médicos de família, que entre muitas atividades é também responsável pela realização de cursos a médicos e aos seus profissionais contratados.
Não estou ligada à investigação, mas a Universidade de Medicina de Odense tem um departamento de investigação de Medicina geral e familiar e regularmente pede a colaboração dos médicos em projetos de investigação, nos quais habitualmente participo. Para além disso, participo em reuniões trimestrais com colegas de outras clínicas da mesma zona geográfica, com o objetivo de melhoria da qualidade dos cuidados de saúde prestados.
E em relação ao equilíbrio vida pessoal vs trabalho? Consideras que tens um bom equilíbrio? Consideras que tens uma boa qualidade de vida ao ponto de compensar a distância da tua terra, família e amigos?
Considero que hoje em dia tenho uma boa relação entre o meu trabalho e a minha vida pessoal. Foi difícil adaptar-me à língua, a um sistema de saúde que é diferente do português e a aprender a gerir uma clínica. Mas sinto que evoluí imenso em termos profissionais e o meu tempo é usado de forma mais efetiva e eficaz, sem desperdício em atividades que não deveriam ser da competência médica. Em termos pessoais, sobretudo tenho tempo para estar com a minha família a partir das 16 horas, para ter hobbies e para poder usufruir de fins de semana livres. Considero que tudo isso compensa e me dá uma sensação de realização pessoal e profissional que não tinha antes de ter mudado de país.
Entrevista conduzia por Carlos Martins