O impacto abissal dos atestados de carta de condução no quotidiano clínico

Uma boa relação médico-doente é um dos pilares fundamentais para a prestação de cuidados de saúde de qualidade. A emissão dos atestados de condução é um fator que tem originado alguns atritos e desgaste, afetando a relação médico-doente. Tal ocorre porque frequentemente é necessária a avaliação por Oftalmologia, sem resposta em tempo útil no Serviço Nacional de Saúde.


O automóvel representa um dos principais, senão o principal, meio de transporte da população portuguesa. Apesar das principais cidades nacionais serem suplementadas por uma rede de transportes públicos relativamente adequadas, o automóvel mantém-se inalterável no pódio ao longo das últimas décadas, sendo considerado por muitos o meio essencial de transporte não só pessoal, mas também profissional. Um dos pontos considerados na nossa cultura de transição para a idade adulto é a emissão da carta de condução, uma realidade não verificada noutras sociedades orientais e ocidentais em que a utilização dos transportes públicos é transversal a todas as faixas etárias e diversos estratos socioeconómicos.

Um dos requerimentos para a emissão da carta de condução é o atestado médico. Atualmente, este é emitido exclusivamente de forma eletrónica através do preenchimento de um formulário disponível ao nível da plataforma SClínico®. Neste, os principais parâmetros avaliados são: visão, audição, membros/aparelhos de locomoção, doenças cardiovasculares, Diabetes mellitus, doenças neurológicas e SAOS, epilepsia e perturbações graves do estado de consciência, perturbações mentais, insuficiência renal, consumo de álcool, drogas e medicamentos.

Um dos pontos alvo de discussão nos últimos anos tem sido a avaliação da visão. De acordo com a norma 003/2017, intitulada “Avaliação Médica de Condutores”, deve ser assegurada a acuidade visual adequada e outras funções visuais compatíveis com a condução de veículos a motor, em conformidade com o estipulado no Anexo V do Regulamento de Habilitação Legal para Conduzir. A primeira versão deste documento, emitido em 2012, indicava que, na presença de visão adequada questionável, os candidatos deveriam ser examinados por oftalmologista ou por técnico com competências específicas para o efeito. Contudo, desde a sua atualização em 2016, a segunda alternativa foi excluída, sendo apenas válido o exame por parte de um médico oftalmologista. Esta alteração do decreto de lei está em concordância com o despacho conjunto emitido a 8 de setembro de 2016 entre a Direção-Geral de Saúde e o Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P.

Todavia, a aplicação desta realidade jurídica no quotidiano clínico não tem sido linear. Apesar do Decreto-Lei nº 40/2016 indicar a possibilidade de emissão e revalidação do título de condução por estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde integrados no Serviço Nacional de Saúde ou do setor privado e social a partir de abril de 2017, um dos principais locais de emissão é ao nível dos Cuidados de Saúde Primários. Pela ausência de médicos oftalmologistas para a avaliação presencial dos utentes, as opções disponíveis são a referenciação para os Cuidados de Saúde Secundários e a utilização, por vontade do utente e com o suporte da totalidade de custos pelo mesmo, de entidades privadas. Contudo, a segunda alternativa não se encontra disponível para a maioria da população portuguesa, cuja grande parte usufrui de isenção do pagamento de taxas moderadoras. Por outro lado, a resposta disponível nos cuidados hospitalares é lenta e insuficiente. Com a adição desta nova pressão, numa população representada por uma pirâmide etária invertida com a necessidade de renovação a cada 2 anos após os 70 anos de idade, torna-se incomportável a manutenção deste sistema.

Adicionalmente, pelo impacto que o uso do automóvel apresenta no quotidiano da maioria dos utentes e a ausência da informação clínica atempada dos especialistas resulta, por vezes, na negação da emissão do atestado médico por parte do Médico de Família, o que gera atritos na relação entre o utente e o seu Médico e pode, em certos casos, comprometê-la.

Por este motivo, esta situação, frequentemente vivida pelos médicos dos Cuidados de Saúde Primários, motiva a necessidade do desenvolvimento de infraestruturas compostas por profissionais de saúde e de outras áreas direcionadas especificamente para o efeito, com vista à renovação da carta de condução de forma atempada e satisfazendo a totalidade dos requisitos necessários. Deste modo proteger-se-ia a relação entre Médico de Família e utente.

Por Sandra Mimoso Guedes, USF Ramalde, ACeS Porto Ocidental


Referências bibliográficas
Norma de Orientação Clínica nº003/2017 da DGS – Avaliação Médica de Condutores
Decreto Lei nº 151/2017 – Regulamento de Habilitação Legal para Conduzir; publicado em Diário da República nº 235/2017, série I 2017-12-07
Decreto Lei nº 40/2016 publicado em Diário da República nº145/2016, Série I de 2016-07-29

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