COVID-19 e Parentalidade: até quando os constrangimentos no acompanhamento do utente nos serviços de saúde?

 

 

Passados mais de 16 meses desde a declaração da pandemia COVID-19 pela Organização Mundial de Saúde, são incalculáveis as dificuldades, desafios e constantes readaptações que os serviços de saúde sofreram e continuam a sofrer, exigindo um esforço acrescido e uma resiliência, que se têm revelado notáveis, por parte dos seus profissionais. No entanto, focando-me no caso particular da parentalidade, como mãe e médica, preocupa-me o possível impacto de algumas das adaptações organizativas ocorridas nos serviços de saúde, consideradas medidas excecionais de prevenção e controlo da infeção COVID-19. Refiro-me à impossibilidade de acompanhamento por parte de um dos elementos do casal em fases chave da parentalidade, tais como as consultas de pré-conceção ou de infertilidade, consultas de gravidez, realização de ecografias obstétricas, a participação no parto, os momentos imediatos do pós-parto, as consultas de vigilância de saúde infantil e até as consultas de urgência das crianças.

 

A pandemia COVID-19 tem levado, indiretamente, a um recuo na promoção do envolvimento dos pais e do casal na área da parentalidade

 

A parentalidade pode ser definida como um processo complexo através do qual os pais sofrem uma reestruturação psico-afectiva que lhes permite estarem disponíveis para responder às necessidades físicas, afetivas e psíquicas dos seus filhos, com vista à promoção de um desenvolvimento saudável e pleno. Sabendo das diversas exigências psicológicas e físicas da gravidez, parto e puerpério, que impacto emocional poderá ter para a mãe a ausência de acompanhamento nestas fases? Que sentimentos negativos (tristeza?, frustração?, raiva?, sensação de abandono e/ou de isolamento?) e/ou com que intensidade poderão advir? Que impacto podem ter estes sentimentos na sua recuperação e adaptação física e emocional e/ou na prestação de cuidados ao bebé? Qual o impacto da ausência de apoio nas fases iniciais da amamentação pelo seu(sua) parceiro(a), apoio este que é referido em estudos como um dos elementos fundamentais ao sucesso da mesma? Quais as possíveis consequências que podem advir, no que diz respeito ao pai ou parceiro(a), por se ver privado de assistir e participar em fases cruciais da sua parentalidade como a pré-conceção, gravidez, parto e pós-parto? Não estarão a ser promovidas condições para a privação do acesso à informação e para sentimentos de exclusão, dificuldade em se projetar, frustração ou sensação de impotência? Que impacto terão estes fatores na prestação dos cuidados à criança e até mesmo na relação do casal, que perante um dos maiores desafios de vida, se vê privado de um ambiente unificador e promotor do seu empoderamento para ser confrontado com um ambiente segregante? Que impacto podem ter, em última análise, na própria criança, os fatores acima referidos?
Relativamente às consultas de vigilância de saúde infantil ou de urgência, até que ponto deve ser negada a participação conjunta do casal nestes momentos tão importantes, quando os outros cuidados parentais são realizados em conjunto? Se a vontade dos pais/cuidadores for a de recorrerem em conjunto a um serviço de urgência/consulta aberta num momento em que a criança está fragilizada, e, eventualmente, os pais/cuidadores também, será lícito negar-lhes o apoio que podem constituir, quer à criança, quer um ao outro, naquele momento? Como se sentirão os pais/cuidadores ao terem de escolher qual deles acompanha a criança?

É certo que estamos num período altamente desafiante e desgastante na área da saúde, e que muitas questões sanitárias têm sido a prioridade em época de pandemia. No entanto, como profissionais de saúde cabe-nos, também, a tarefa de refletirmos acerca do
estado atual e das regras estabelecidas, pelo risco de se encontrarem desatualizadas. São exemplos relativamente recentes desta permanente readaptação de acordo com a evolução da pandemia, os protocolos relacionados com o pós-parto e amamentação que, por se considerarem, a certo momento, desadequados, foram reformulados, tendo sido suspensa a obrigatoriedade do afastamento de uma mãe com infeção por SARS-CoV2 do seu filho recém-nascido, e também o impedimento da amamentação no mesmo caso. Até que ponto, numa proporção diferente, algumas das regras atuais não deverão também ser reformuladas?

A pandemia COVID-19 tem levado, indiretamente, a um recuo na promoção do envolvimento dos pais e do casal na área da parentalidade, com riscos imensuráveis. Como profissionais de saúde, na minha opinião, o nosso papel deve ser o da promoção e incentivo da comparência e participação de ambos nas consultas, atos e/ou procedimentos a efetuar. Desta forma, além do apoio mútuo que podem constituir, poderá haver também uma capacitação dos elementos do casal, pelo acesso à informação, o que se revela crucial no que diz respeito à literacia em saúde.

Pais envolvidos, devidamente informados e empoderados, terão mais e melhores ferramentas para um melhor e mais fácil exercício da parentalidade, que, em última análise, se repercutirá em melhores cuidados prestados às “nossas” crianças.

Por Helena Fernandes
Médica especialista em Medicina Geral e Familiar, USF Almada

 

 

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