[Este é um relato que data do início da Primavera de 2021. Precisei desta distância temporal e do tanto que mudou entretanto para conseguir percorrer as memórias dessa manhã a levar vacinas de porta em porta.]
” O coordenador do plano de vacinação, o Vice-almirante Gouveia e Melo, afirmou que será possível daqui a 2 semanas vacinar cerca de 100 mil pessoas por dia” – escutamos na rádio do táxi que nos leva por aquelas ruas da Foz do Douro, que são também tantas delas os lugares dos passos da minha infância. Os plátanos sucedem-se e, reflectidos no vidro do banco traseiro do táxi em que sigo, começam a mostrar, ao fundo, o mar. As palavras ouvidas ainda ecoam na minha cabeça. Hoje vacinaremos 6 pessoas dependentes nas suas casas. Quantas vezes teríamos que multiplicar 6 para dar 100 mil?
Na primeira casa, foi tudo simples. As perguntas protocolares, após o que enfermeira administrou a vacina e eu, para me sentir útil e médica, medi as tensões, auscultei e procurei por edemas dos membros inferiores. Da meia hora de vigilância, ainda sobrava tempo; assomei à janela e mirei com um suspiro toda a avenida Brasil e o Atlântico. Parecia tudo certo naquele momento.
Na segunda morada, subimos um lanço de escadas. Veio uma senhora à porta, dizendo que era quem dava uma ajuda lá em casa. E que nos preparássemos, “ela tem muito mau feitio e não quer a vacina“. Chegamos ao quarto e recebemos um olhar desconfiado. Tentei a minha sorte: “Nós vimos dar a vacina por causa do vírus que por aí anda a infectar muita gente, já ouviu falar na covid, no coronavírus?”. “Onde está a minha médica de família, a Dra. X?” – ripostou. “Eu trabalho com a sua médica no centro de saúde, foi ela que me pediu para cá vir, porque acha que a vacina a vai ajudar“, respondi prontamente. “Então se foi a minha médica que disse, eu tomo“. É esta a magia dos médicos de família, esta confiança construída sobre os anos de convivência, e eu não pude esconder um sorriso condizente.
Na terceira casa, começou tudo difícil. Já tinha estado em vários bairros sociais da cidade, mas aquele era outra dimensão. O taxista acalmou os nossos receios: “ficam aqui, é já por aquele corredor, vão ver que são médica e enfermeira, não vão ter problemas”. O que vislumbrei foram várias pessoas encostadas às paredes de tijolo, quase pareciam em fila, a passar informação de boca em boca, até que uma ordem irrompeu: “Deixem passar a doutora!”. Chegamos ao apartamento em que fomos recebidas com simpatia pela cuidadora de um senhor com mais de 90 anos e anquilosado, mas que sabia atirar beijinhos como uma criança. Quando regressei ao táxi foi como se abandonasse um mundo paralelo diferente de tudo o que conhecera até aí.
Chegados à quarta casa, encontramos uma vista desafogada para campos que nos surpreendeu e fez esquecer, por momentos, que estávamos bem no coração da cidade. Um senhor viúvo, com mais de 80 anos, aguardava-nos. Não recordo muitos pormenores da nossa permanência neste apartamento, talvez porque a despedida marcou todo este encontro. No final, com lágrimas a percorrerem as rugas e o rosto, perguntou: “Quando é que acham que posso abraçar de novo os meus netos?”.
Na quinta casa, já tudo parecia rotineiro. Começar logo por vacinar, após o questionário preenchido, para ganhar tempo. Mas algo não pareceu bem. O meu olhar, com automatismo, passou da observação dos movimentos respiratórios, aos lábios e logo aos membros inferiores. “Está com falta de ar?” perguntei enquanto tirava o saturímetro e o estetoscópio da pasta. “83% em ar”. Insuficiência cardíaca agudizada, foi a suspeita que tentei confrontar com uma revisão cuidada dos antecedentes – que desconhecia -, da medicação e dos achados no exame objectivo. Referenciei ao serviço de urgência. Soube, depois, que a senhora ficou internada e teve recuperação favorável.
Estávamos na sexta casa e já se sentia o cheiro do almoço que se cozinhava, pensei que seria uma jardineira de vitela, mas é possível que fosse a hipoglicemia iminente a influenciar o meu olfacto. Tratava-se de uma senhora com perto de 90 anos acamada na sequência de um acidente vascular cerebral. Mas tudo o que via era um porte distinto, um rosto que outrora teria causado amores desencontrados, um discurso rico e pausado a fazer adivinhar uma educação cuidada, à frente do seu tempo. Havia sido professora de Química, contou-me. Não pude deixar de reparar no livro na sua cabeceira: “A Rosa de Iorque”. Disse-me que era uma história de suspense sobre um príncipe e pedras preciosas, passado em diferentes cidades. “Lê um livro a cada dois dias”, confidenciou-me a familiar presente no quarto.
E assim, 6 vacinas, 6 casas, 6 histórias depois: continuava a faltar muito para cem mil, mas percebi que 6 era apenas o factor multiplicador da diferença que fizéramos.
Por Sofia Baptista