Ensaio p’ra depois da pandemia

 

 

Estamos a entrar numa fase desafiante do momento actual e, se pouco tempo haverá para sequer debelar os desafios do presente, quanto mais pensar no futuro, ao menos, tenhamos bem claro em relação ao Serviço Nacional de Saúde e aos seus profissionais: não podemos voltar ao prévio status quo.

 

No seu Ensaio sobre a cegueira, Saramago descreve-nos a emergência de uma inverosímil epidemia de cegueira branca. São muitas as análises que poderíamos fazer correlacionando o romance de 1995 e a pandemia que actualmente vivemos. Por ora, sem oportunidade de voltar a percorrer as vertiginosas páginas dessa distopia, que se lêem de um fôlego, desde a quarentena imposta à nova ordem social que se instalou, detenho-me no final: os cegos vão recuperando e, com o retorno da visão, é-lhes concedida uma ímpar oportunidade de reabilitação. Novamente dispondo do sentido da visão, podem, desta vez, experimentar ver, reparar.

Estamos a entrar numa fase desafiante do momento actual e, se pouco tempo haverá para sequer debelar os desafios do presente, quanto mais pensar no futuro, ao menos, tenhamos bem claro em relação ao Serviço Nacional de Saúde e aos seus profissionais: não podemos voltar ao prévio status quo. É preciso valorizar as carreiras médicas. Descentralizar o poder e conferir autonomia às pequenas equipas. Permitir aos médicos flexibilidade para conciliar interesses na agenda: sejam o desenvolvimento de investigação, docência ou diferentes competências clínicas. Reestruturar os internatos para que sejam verdadeiramente caminhos de construção de médicos altamente competentes e motivados, ao invés de remendo barato de falhas sempre por colmatar. É preciso avaliar os clínicos com indicadores baseados na evidência, desburocratizar.  Nos cuidados de saúde primários, reduzir as listas de utentes, reforçar as equipas de saúde pública. Reconhecer o espaço da medicina de urgência.

Os médicos querem tempo para olhar mais para o seu doente. Para isso, será preciso, primeiro, olhar para dentro. Para a reestruturação que urge no rescaldo desta pandemia temos que fazer “dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro” (J. Saramago, Ensaio sobre a cegueira).

Por Sofia Baptista

 

 

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