Estórias do consultório III: o milagre do exame neurológico?

 

 

Esta estória poderia ter-se passado há uns 100 anos. Nesta consulta, nada da moderna parafernália médica foi utilizada, mas a verdade é que aconteceu apenas há uma mão cheia de anos. Não retive alguns detalhes que aqui poderiam acrescentar interesse, ainda assim acredito recordar o essencial para narrar o que aconteceu naquele dia, algures no início do Outono, no último ano do meu internato em Medicina Geral e Familiar.
Mais uma “consulta aberta” num mar amarelo (assim aparecem – a amarelo – os doentes em espera no programa informático), facto que ainda hoje tem o condão de cursar com taquicardia reflexa em mim. Tratava-se de uma senhora, com cerca de 50 anos, que há cerca de uma semana atrás estivera em consulta na unidade. Sem antecedentes patológicos de relevo ou algo digno de menção para o caso. Entrou no consultório muito agitada, a gesticular: “Eu continuo com as tonturas, pouco melhorei desde há uma semana para cá, a minha filha disse que eu tinha que exigir um TAC, posso estar a ter um AVC há 2 semanas e ninguém quer saber“.
Minha senhora, foi observada por um excelente médico, com esses tacões altos que traz calçados e a gesticular tão activamente não me parece que possa ter nada de grave” – estas foram as palavras que passaram na minha cabeça e que nunca cheguei a proferir. Sei que “perderia” a doente, ali mesmo, naquele instante, caso o tivesse feito. Assim, pelo contrário, simplesmente escutei, em silêncio, aguardando que a senhora se acalmasse, o que aconteceu passado um minuto (ou menos). Tinha tido já oportunidade de compreender que o quadro era compatível com uma vertigem paroxística benigna, não obstante, estava certamente a ter impacto na qualidade de vida daquela pessoa, que precisava de ser ajudada. Expliquei isso mesmo e que, para ficar com mais certezas do que lhe dizia e podermos delinear um plano de seguimento e tratamento em conjunto, gostaria de fazer um exame neurológico pormenorizado. A senhora acedeu, com alguma surpresa e expectativa sobre o que sucederia nesse tal exame. Fiz o melhor e mais pormenorizado exame neurológico que recordo desde os tempos do curso de Medicina. A cada gesto, a cada “siga por favor a caneta apenas com os olhos, sem virar a cabeça”, a cada “muito bem, agora por favor assim…”, havia um contentamento perceptível, um brilho no olhar da doente. E concluí, tentando acrescentar alguma gravidade: “Terminámos, todo o exame está absolutamente normal“.
Em troca recebi um “Ai, doutora, nunca me fizeram um exame tão completo, que boas notícias, acho que até já estou melhor“. E eu fico por aqui na narrativa, já não me recordo do resto.

Por Sofia Baptista

 

 

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