Fake science no Parlamento




Há épocas em que a sociedade, tomada de pânico, se desvia da ciência e procura a salvação na ignorância.
Mikhail Saltykov-Stcherdrine

Um mundo sem ciência é a escravatura. 
Ernest Renan


Antes de mais, a declaração de interesses. Se tiver de escolher qual a mais bem sucedida inovação da história da Medicina responderei: as vacinas.

Contudo, pertenço ao número dos que discordam abertamente do alargamento do PNV por via parlamentar (política) à revelia do parecer(técnico-científico) definitivo da DGS.

Esta ingerência é preocupante, porque reflete uma confusão entre poder político e poder técnico-científico. O poder político tem a ver com a governança das comunidades humanas. O poder técnico-científico com o conhecimento do funcionamento da natureza e suas leis. O bom político será aquele que tem em conta o saber técnico-científico e toma decisões dentro da exequibilidade que circunstâncias que extravasam saber científico lho permitam.

O desrespeito pela independência da ciência é próprio dos regimes autoritários e obscurantistas. Nesses regimes, os políticos arrogam-se mesmo a ditar as “verdades” científicas! O terno Trump, Putin e Erdogan nega a responsabilidade da atividade humana nas alterações climáticas e o primeiro defende que  proliferação de armas aumenta a segurança dos cidadãos. O novo governo italiano decidiu que a vacina contra o sarampo é prejudicial. E isto só para citar exemplos mais recentes.

A travessura dos nossos deputados não se pode comparar com as vilanias acima citadas, mas convenhamos que pode ser vista como um precedente bastante preocupante.  Em defesa dos parlamentares que decidiram curto-circuitar os pareceres da DGS seja dito que se basearam em opiniões respeitáveis da Sociedade Portuguesa de Pediatria. Mas isso não chega. Historicamente é também verdade que anteriores recomendações dos pediatras neste particular acabaram por ser validadas pela DGS. Mas isso não basta. Há que não interferir com modus operandi da ciência e não tentar esborrachar o rigor que lhe é próprio, baseando-se em opiniões parcelares.

Como já foi dito o espírito científico não se coaduna com autoritarismos ideológicos ou religiosos. No Ocidente, a revolução científica helénica soçobrou com queda do Império Romano aliada à ascensão do absolutismo ideológico imposto pelo cristianismo, mergulhando-o num obscurantismo de mais de um milénio. Umas réstias de sabedoria antiga, que se mantiveram nas bibliotecas dos mosteiros, e a curiosidade e génio de alguns nomes isolados (discretos o suficiente para não pisarem linhas vermelhas) foram as centelhas de onde foi possível reacender a luz do livre pensamento, agora sob a forma de revolução científica. Incontornável se torna referir a contribuição islâmica para o progresso técnico e científico durante a noite obscurantista europeia. O quinteto Copérnio, Kepler, Galileu, Newton, Descartes iniciou uma longa epopeia de libertação do saber de experiência feito face ao totalitarismo da verdade revelada. Na política o equivalente a esta libertação encontra-se na democracia. Ora, já não há como negá-lo, a onda democratizante encontra-se em nítido refluxo em todo o mundo. Este crepúsculo do livre pensamento terá reflexos funestos na cultura científica. Surpreendente e alarmante é facto do obscurantismo anticientífico florescer, embora sub-reptício, nos próprios regimes democráticos, de que é exemplo o luso episódio.

Tendo em conta os partidos que se uniram nesta votação somos levados a crer que o móbil não foi minar a ciência, mas puramente e simplesmente de cariz populista. Seja como for, erodem o prestígio científico-técnico. Mas há outro efeito secundário potencialmente deletério. A ligeireza com que aprovaram a introdução de três novas vacinas no PNV, sem as cautelas devidas, é suscetível de dar força aos obscurantistas movimentos anti-vacinas.

Por Acácio Gouveia, aamgouveia55@gmail.com

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