Medicina Familiar, Geral até quando?

 

 

Foi há precisamente 40 anos, no longínquo ano de 1982, que o internato médico da especialidade de “Generalista” foi criado, sendo que em 1990 a especialidade é oficialmente reconhecida como Medicina Geral e Familiar, terminologia que se mantém até aos dias de hoje.1,2
Vários países têm vindo a abandonar esta denominação para se referir ao médico especialista em cuidados de saúde primários, estabelecendo uma clara diferença entre a “General Practice” e “Family Medicine”.3,4 Em Portugal esta discussão para ainda estar a começar.
Desde 2016 que em Portugal centenas de médicos não ingressam no internato de formação específica, acabando muitos deles por exercer em contexto de serviço de urgência, sendo que outros realizam formação pós-graduada para se diferenciarem numa área médica. Na sua maioria, mais cedo ou mais tarde, exercem de alguma forma a vulgarmente conhecida “Clínica Geral”. Será razoável denominarmos um médico que por sua vez entra na especialidade e completa a longa jornada do internato médico com todos os desafios e sacríficos que isso acarreta, de médico especialista em “Clínica Geral”?
Nada em desabono dos colegas que acabam por não seguir a carreira tradicional da escolha de especialidade, muitos por incompetência do sistema em recebê-los. Esta opção também acontece por escolha, como se verificou no ano transato em que pela primeira vez desde há longa data ficam vagas de especialidade por ocupar, talvez com o intuito de uma nova tentativa na prova nacional de acesso ou de prosseguir uma carreia fora da especialidade. O facto de hoje em dia ser mais sedutora em alguns casos uma carreira sem especialidade diz muito de como está o “sistema”, uma luta que fica para outro dia.
A previsão é que o número de médicos sem especialidade continue a aumentar nos próximos anos, sendo por isso importante diferenciá-los dos médicos especialistas em Medicina (Geral) Familiar, pois o mais provável é que o doente em momentos diferentes da sua vida venha a ser avaliado por ambos.
E nós, médicos de família, já alguma vez paramos para pensar se o utente que está à nossa frente, que conhecemos e que nos conhece tão bem, sabe se somos especialistas ou médicos “generalistas”?
Muitos utentes não saberão dar uma resposta inequívoca a esta pergunta, todavia não terão a mínima dúvida em apontar o colega que o segue na consulta hospitalar como um médico especialista e diferenciado na sua área. Concordamos que à medida que vamos ganhando o seu reconhecimento a terminologia pouco importa, pois após conquistarmos a sua confiança (tantas vezes tarefa desafiante e não infrequentemente, falhada) até para ser operado pede a nossa validação.
“Mas é só o nome, que diferença faz?”
A mudança da denominação da especialidade é inexorável, não pela semântica, mas pela mensagem que transmite aos seus pares e aos seus doentes. Afasta a ideia do Clínico Geral que é especialista em tudo e simultaneamente em nada e destaca um especialista em Medicina Familiar, que realizou um internato e que exerce medicina numa área tão diferenciada como qualquer outra área médica hospitalar ou não hospitalar. Transmite, também ao utente, o conceito de ter um médico tão especializado como qualquer outro que o segue na sua consulta hospitalar. Se reconhecemos um médico que se dedica ao cérebro como especialista em Neurologia ou um que trata uma leucemia como um especialista das doenças do sangue como Hematologista, porque não havemos de reconhecer um que se dedica ao estudo das famílias e da medicina preventiva como especialista em Medicina Familiar?
Até quando vamos querer ser associados ao médico do passado que há muito não somos, e quando finalmente passaremos a ser, também no papel, os médicos não gerais, mas sim especialistas em Medicina Familiar, que previnem, diagnosticam e tratam as doenças da sua área como qualquer outra especialidade?
Medicina Familiar, Geral até quando?

David Magalhães, USF Íris & Margarida Glórias Ferreira, USF Rodrigues Miguéis

Referências:
1. Ministério da Saúde, Governo de Portugal. “História do Serviço Nacional de Saúde”. Disponível em: https://www.historico.portugal.gov.pt/pt/o-governo/arquivo-historico/governos-constitucionais/gc19/os-ministerios/ms/quero-saber-mais/quero-aprender/historia-sns.aspx. Acesso: 25 de janeiro de 2022
2. Wonca Europe “A Definição Europeia de Medicina Geral e Familiar (Clínica Geral/Medicina Familiar)”
3. Onion, Daniel K. and Robert M Berrington. “Comparisons of UK General Practice and US Family Practice.” The Journal of the American Board of Family Medicine 12 (1999): 162 – 172 https://doi.org/10.3122/jabfm.12.2.162
4. Thomas V, Puig B, Llobera J, Pareja A.. El residente de medicina familiar y comunitaria ante su especialización (II). Revista de Sanidad e Higiene Pública, 65 (1991), pp. 77-85

 

 

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