Mónica Granja

Leitura médica: “Em Defesa da Criança”, de Teresa Ferreira, Editora Assírio & Alvim, 2002

Há médicos extraordinários que nunca olhei nos olhos mas dequem li tudo quanto consegui agarrar, sentindo-me quase perto doprivilégio que seria trabalhar com eles.

Aconteceu com João dos Santos, que mudou não só a minha vida, como a dos meus filhos e a dos meninos de cuja saúde cuido.

Com Françoise Dolto, que me demoliu, reconstruindo-me emseguida. Com João Lobo Antunes, que me tornou uma pessoa e umaprofissional melhor. E com Teresa Ferreira que, neste seu único livro(compilação póstuma da sua vasta obra), me deu um olhar parecido com odas crianças.

Pedopsiquiatra e psicanalista, conheceu (e terá compreendidocomo poucos) crianças que foram bebés sem direito algum, excepto o davida. Referida por Pedro Strecht (um dos organizadores do livro) como”uma pessoa que se colocava de forma única na primeira linha de defesadas crianças”, fala-nos do paradoxo (ou dos limites da intervenção) dapedopsiquiatria: as crianças que mais sofrem, são as que mais tarde (oununca) chegam aos seus cuidados.

São histórias de horror (de abandono, violência, abuso eloucura) as que conheceu e que a levam a repetir, com desânimo, emvários dos seus textos: “o bebé não vota”. Fala-nos de capacidadematernal (distinguindo-a da capacidade reprodutiva) e diz: “há mãesnão-humanas. Também sabemos que elas não tiveram na própria origem umamãe humana.

Sabemos que há uma translação intergeracional da violência. Pensamos que se deve tentar pará-la”.

 

 

Outras leituras: “Uma história de Amor e Trevas”, de Amos Oz, Editora ASA

Livro autobiográfico que conta, simultaneamente, a históriado povo judeu, da construção de Israel e do nó do problemaisraelo-árabe. Não podia tratar de um mundo mais diverso do meu e, noentanto, é como se eu tivesse sido aquela criança um dia deitada aoentardecer a sentir-se uma migalha “num universo dentro de outrouniverso dentro de outro universo”.

Mesmo quando o autor relembra a raiva que sentiu, aos 12anos, pelo suicídio da mãe (“foi-se embora, sem me avisar”), mesmo aí,sem conhecer essa dor (que o amordaçou durante décadas, até ser capaz deescrever este livro), é como se eu soubesse exactamente onde ela memagoaria, insuportável, se me acontecesse.

Talvez todas as infâncias sejam amassadas assim: em partes iguais de luz e escuridão, de medo e de amor.

Como se pode sobreviver a uma infância como a dele: entreuma mãe que entristeceu de morte e um pai alegre mas com quem nuncafalou da mãe (“o pai e eu parecíamos dois maqueiros transportando umferido por uma encosta acima”)? Entre uma ascendência de judeus europeusintelectuais (que o educaram como sobreviventes da humilhação) e trintaanos num Kibutz, (onde entrou com 15 anos, ferido a ponto de mudar denome para escapar à sua história)? Entre o deslumbramento de assistir aonascimento de uma nação e a desilusão da guerra interminável, dodesencontro e da ausência de honestidade política? Como, não só sesobrevive mas, se acaba assim, como o descreviam em criança, “inundadode luz”?

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