Ocaso

O universo digital está presente em quase todos os aspectos do nosso dia-a-dia profissional e pessoal.

Actualmente até o final da vida se encontra online através do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO).

O SICO tem como objectivos a desmaterialização dos certificados de óbito, o tratamento estatístico das causas de morte, a actualização da base de dados e a emissão e transmissão electrónica dos certificados de óbito para efeitos de elaboração dos assentos de óbito.

A salientar que, apesar das dúvidas levantadas recentemente, o papel não foi totalmente excluído pois, segundo o Artigo 71.º do Código Civil , têm o direito ao  fornecimento de cópia do certificado de óbito “o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido.” (sobre a fundamentação legal recomendo também o n.º 2 do Artigo 70.º Código Civil, a Lei n.º 67/98, e as deliberações da CNPD disponíveis aqui.).

A primeira vez que verifiquei um óbito estava a dar os primeiros passos do internato no ano comum. Numa enfermaria de Medicina Interna em que o silêncio era apenas rompido por algum gemido distante, combati a minha ansiedade focando-me em todos os passos técnicos ensinados pela minha orientadora de estágio. Cumpridos os trâmites burocráticos, deixei-me mergulhar na rotina de trabalho de forma maquinal. Mas ainda nesse dia, assim que o manto negro da noite se abateu, a face do doente atormentou um sono que se queria tranquilo. Só aí percebi a insistência de um Prof. da Faculdade que nos tentava transmitir a importância de exorcizarmos os nossos fantasmas.

Mais tarde, já na recta final do internato em MGF, tive que verificar e certificar um óbito no domicílio. Recordo as diferenças óbvias entre o ambiente asséptico e solitário do Hospital e o quarto acolhedor desta doente, rodeado de familiares com uma tristeza serena perante a partida esperada  da avó. Apesar da minha curta experiência, aprendi nesse dia (e no período que o antecedeu) o papel fundamental do médico de família na fase final da vida.

Hoje, não posso deixar de me questionar sobre quantos doentes estarão impedidos – por várias razões – de aceder, durante os seus últimos dias, a este acompanhamento personalizado pela equipa de cuidados de saúde primários.

 

Luís Monteiro, Médico de Família

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