Pedro Serrano

Não foi fácil, decidir sobre dois livros que me “tocaram”,“um médico e um não médico”, como me foi pedido. Quanto ao médico, oslivros que mais consumo são livros de epidemiologia e de metodologias deinvestigação na área biomédica, assunto demasiado secante para que oleitor médio, mesmo médico, lhe achasse graça ou, sequer interesse.Quanto ao livro não médico, a dificuldade foi ter de escolher apenas um epela minha cabeça passaram obras como A Casa da Felicidade, de EdithWharton, Retrato de uma Senhora, de Henry James, Anna Karenina, de LeonTolstoi, Brideshead Revisited, de Evelyn Waugh, O Céu Que Nos Protege,de Paul Bowles, qualquer um dos volumes dos Contos de Anton Tchékhov, alista foge por aí fora… Assim, aqui fica a plenitude possível:

 

Outras leituras: “Leite Derramado” de Chico Buarque, editora Dom Quixote, 2009

Dificilmente o livro poderia ser escrito por alguém commenos de 60 anos, não vejo um jovem escritor a poder fazê-lo de modotão certeiro, isto só pode ser contado por alguém que tenha um passado arebobinar, e saiba perspectivar, com os pés assentes no pó dasestrelas, o previsível futuro que lhe resta.

Leite Derramado é a história de um velho que, numa cama dehospital, após a clássica fractura do fémur, tenta, desesperadamente,comunicar com o exterior, contar as histórias da sua vida, mais para elepróprio se orientar em si, do que por gosto de se exibir.

O homem está confuso, repete os mesmos episódios, mas nuncaexactamente da mesma forma, e o leitor nunca sabe bem a quem o narradorse dirige: se a uma enfermeira atenta e bonita, se à filha queraramente o visita, se à memória da mulher, o amor da sua vida, quedesapareceu da vida dele por traição, doença, loucura – as hipótesesvariam conforme os dias, nunca são seguras, nada é estável na memória deum velho que, ainda por cima, voga à deriva nas brumas da analgesia eda solidão de um hospital.

Chico Buarque escreve sobre tudo isto tão magnificamenteque, a primeira vez que li o livro, tive de me esforçar por fazerpausas, não despachar a leitura na sofreguidão de uma penada. É que, sepor um lado, custa acabar o romance e deixar os personagens, por outro,cada capítulo ganha em ser lido na frescura de uma atenção desperta queatenda aos pormenores e às palavras escolhidas para os narrar.

Leia-o devagar, o mais devagar que conseguir e abandone-seao ritmo confuso, titubeante, em circular espiralada, de uma memória quetem a consciência de que nada restará do que foi, testemunhou e sentiu,mal lhe cubram a face com um lençol.

 

 

Leituras médicas: “Musicofilia” de Oliver Sacks, editora Relógio d’Água, 2008

Oliver Sacks é um neurologista norte-americano que, hálongos anos, se dedica, partindo, sobretudo, de relatos de casosclínicos, a teorizar sobre as relações entre o sistema nervoso, o corpo eos estado de alma. Um pouco à semelhança do que, anos mais tarde, fariao português António Damásio, Sacks usa uma meticulosa e inteligentehistória clínica (ainda mais do que as tecnologias modernas das imagensdo cérebro em movimento, tão queridas a Damásio) para explorar a basebiológica das emoções, dos sentimentos, das sensações, da alma e daconsciência.

Musicofilia explora a relação entre a música e o cérebro,invocando a perplexidade inicial do porquê de algo tão inútil aosprocessos biológicos de causa e efeito, como o é a música, representarum papel tão importante na vida de centenas de milhões de pessoas! Etudo se torna ainda mais incrível ao sabermos que não existe nenhumcentro musical no cérebro, havendo antes a participação de uma dúzia deredes neuronais, espalhadas pelo cérebro, que lidam com este milagre.

O livro constrói-se muito (à semelhança dos de Damásio) pordefeito, isto é, com base na análise das consequências que acidentesvasculares cerebrais, formas graves de epilepsia, tumores e doençasdegenerativas do sistema nervoso provocam na percepção, níveis de emoçãoe comportamento das pessoas afectadas, com a música.

E o leitor interessado no poder de um raciocínio clínico bemdirigido, exposto de uma forma clara e precisa, ficará de boca abertacom o poder da música como única forma de relacionamento com o mundo deindivíduos afectados por Alzheimer ou com a história do cirurgiãoortopédico que, sem antecedentes musicais ou gosto especial por música,atingido por um raio durante uma trovoada, se tornou, aos 43 anos deidade, num pianista exímio e num compositor de música clássica…

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