Sorriso





Naquela tarde a Igreja, repleta, parecia um refúgio simultaneamente  providencial e sinistro para a intempérie invernal. No primeiro banco de madeira lascada as duas vizinhas comentavam em surdina “Coitada da Maria. Está tão abatida! Bem sei que o homem dela era muito doente. Mas isto foi tão depressa!”

Esta observação era partilhada por todos os que balbuciavam “Os meus sentimentos” e, no entanto, era absolutamente falsa.

Maria Antunes, com os seus 70 anos de idade, tinha assistido a suficientes funerais para saber de cor os passos esperados. A roupa preta, o rosto fechado, as lágrimas contidas, o olhar rasteiro. Tinha observado tudo no passado com uma atenção que parecia adivinhar a utilidade futura da coreografia.

Portanto, mesmo os que se julgavam mais íntimos do casal, acreditavam na personagem criada. Após tantas horas até ela estava surpreendida com a sua capacidade de expressar algo e sentir o seu contrário.

A cerimónia desenrolou-se acompanhando o ritmo taciturno dos presentes até que alguém perguntou retoricamente enquanto arrastava a viúva  “Não quer ir lá à frente, antes de fecharem o caixão?”

Ela aproximou-se, parou breves segundos, fingiu secar uma lágrima fugidia e pensou “Mesmo morto pareces estar sempre com aquela expressão. Mas hoje, finalmente, vou jantar sem ter como companhia o teu sorriso idiota”.

Olhou em redor e recordou a cerimónia em que o mesmo homem, naquele mesmo altar, a enredara com um olhar que prometia mundos e mares, e que tinha vencido a muralha férrea construída pelos conselhos da mãe e tias “Essa gente do teatro não é de fiar”.

Volvidas cinco décadas tudo parecia uma miragem, uma ilusão provocada pela astúcia dele e adensada pela sua ingenuidade.

Sob o mesmo tecto cedo percebeu que a frase “no palco não sou eu que beijo” fazia parte de um guião decorado para justificar os serões de ensaios arfantes.

Silêncio.

Maria optou por não ripostar abertamente. Inicialmente apenas pelo desafio de “um dia eu vou conseguir mudá-lo”, seguido de “agora tenho que cuidar dos filhos” e culminando num “já somos velhos”.

Até que numa manhã luminosa regressou mais cedo a casa. Seguiu os sons da cadência voluptuosa até ao quarto. Encostada à ombreira reconheceu a sua melhor amiga e viu, pela primeira vez, aquele sorriso idiota.

Silêncio.

Saiu discretamente, deambulou pelas ruas, e decidiu.

Delineou o plano enquanto retomava, após 20 anos, o prazer de fumar após o café.

A estratégia era simples, para contrastar com os enredos dos policiais da colecção Vampiro que o seu irmão ainda lia compulsivamente.

O marido, outrora um desportista, tinha-se tornado sedentário, ávido de refeições fartas, pelo que há muito que tinha sido acorrentado pela diabetes tipo 2, fibrilhação auricular e hipertensão arterial.

Como Maria tinha assumido desde sempre a responsabilidade pela lista de medicamentos foi fácil alterar a terapêutica.

Divertia-se a criar uma nova tabela diariamente “hoje tiro este e troco aquele” e a ver o sobrolho cada vez mais franzido da legião de médicos.

Agora que o funeral tinha terminado sentiu uma vontade de encerrar o papel piedoso. Insistiu em ver cumprida a sua vontade e regressou sozinha a casa.

Silêncio.

Duas da manhã e a insónia impunha-se  como um manto frio. Levantou-se de rompante, ligando todos os interruptores e correndo pela sala, pelos quartos.

Em vão.

Por todo o lado sentia, como um espectro, o sorriso idiota.


Nota: Esta crónica é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais foi mera coincidência.


Por Luís Monteiro, Médico de Família, Co-Editor MGFamiliar

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