As USF como modelo de organizações democráticas

Mesmo no século XXI, 22 anos após a queda do muro de Berlim, o termo “democracia organizacional” gera algum desconforto a gestores e políticos, apesar de ser o modelo mais eficaz de gestão das organizações[1].

As explicações do desconforto são variadas, mas por ventura por ser inconscientemente associado ao tipo de funcionamento das organizações da ex. União Soviética, apesar, do ainda modelo dominante, burocrático-administrativo de comando e controlo do SNS, serem apontados como inadequados e disfuncionais, a resistência é enorme ao apoio deste tipo de organizações.

Nesse sentido, temos assistido na última década no SNS, excepto no desenvolvimento das Unidades de Saúde Familiar (USF), 356 instaladas desde Setembro de 2006 até agora, ao tufão do gestionarismo e da empresarialização, inicialmente SA e ultimamente EPE.

Veja-se, o que se tem passado com este Governo. Apesar da recomendação da Troika[2] em fomentar mais USF, o ano de 2012 foi o ano em que menos USF iniciaram actividade. Apenas 38, correspondente a 11% das actuais 356[3]!

Recorda-se que são numerosos os apelos de vários estudiosos do conhecimento organizacional à necessidade das organizações do trabalho estarem atentas à participação democrática, à qualidade de vida e ao envolvimento dos seus profissionais.

Muitas vozes conhecedoras da matéria, que desde pelo menos 2003, sugerem a necessidade de democratizar as organizações[4], dando-lhes autonomia funcional, levando à existência de objectivos comuns e geradores de empenhamento dos colaboradores.

Nestas novas formas de organização, são cultivados os princípios que permitem aos profissionais exercer as suas competências de uma forma adequada, verificando-se quatro grandes premissas[5], à semelhança do que acontece nas USF:

  1. 1. Liberdade com responsabilidade: numa organização multiprofissional (USF), os sistemas de controlo apertados (ex. controlo biométrico da assiduidade) não são apenas desnecessários, como são mesmo contraproducentes. Em sua substituição, recorre-se à responsabilidade individual, à transparência colectiva e à orientação por objectivos. O que é permitido não tem de ser previamente autorizado, pois presume-se autorizado.
  2. 2. Estruturas mínimas: um único conselho geral, onde todos os profissionais tem assento e direito a um voto, um órgão técnico, se assim o desejarem e um coordenador eleito por maioria de dois terços com o dever de ser líder. Onde liderar, é ter capacidade para libertar a energia dos profissionais, inovar soluções aproveitando a inteligência colectiva, dirigir e pilotar, empoderar para partilhar a responsabilidade, ligar o alarme (ler sinais de aviso à navegação), renovar e formar através da democracia organizacional.
  3. 3. Regras simples: missão e valores partilhados, como confiança, alegria, franqueza, justiça, trabalho de equipa, inovação, orientação para o resultado, abertura à mudança e resiliência, inseridos no regulamento interno.
  4. 4. Discriminação positiva e contratualização, a outra lógica, TMQ (Time, Quality e Money): onde o Time é definir prazos e metas (plano de actividades anual e contratualziação), Quality é especificar objectivos com critérios de qualidade (contratualização) e Money, definição de um sistema retributivo misto, onde se insere um sistema de incentivos colectivo (institucionais e financeiros).

 

Como se pode ver, as USF como “novas” organizações democráticas são plataformas[6] nas quais os profissionais utilizam e expandem as suas capacidades, baseadas em sete princípios:

  1. 1. Entre a organização USF e os seus profissionais, estabelece-se uma relação adulto-adulto, tendo por base o voluntariado e um processo de candidatura colectivo.
  2. 2. Os profissionais são tidos como investidores de capital humano no contexto organizacional, onde cada profissional tem o mesmo “peso” no conselho geral da USF.
  3. 3. Os profissionais podem desenvolver-se e expressar capacidades diversas para além das tarefas das suas próprias profissões.
  4. 4. Os profissionais têm direitos e obrigações para consigo mesmos e perante os outros. A liberdade de uns não é conseguida à custa dos direitos dos outros.
  5. 5. Existe um propósito partilhado: os profissionais coordenam o seu trabalho não porque os sistemas de controlo sejam rígidos e apertados, mas porque estão unidos pela mesma missão e valores.
  6. 6. Prestação de contas colectivas, tanto à administração como aos utentes, resultados esses, que interferem na obtenção ou não de incentivos e de eficiência.
  7. 7. Os profissionais deixaram de ter emprego para passarem a ter empregabilidade.

Em síntese: a marca USF, identifica-se na sua génese organizacional como uma organização democrática e positiva, marcada pelo envolvimento dos seus profissionais na tomada de decisões, acelerando assim, a capacidade de resposta a problemas, desafios e oportunidades, tornando-se uma marca altamente competitiva e eficiente do SNS.

É pena, que no SNS, não exista mais espaço para organizações simples e democráticas que facilitem a actuação de pessoas complexas.

João Rodrigues, Coordenador da USF Serra da Lousã, smzcjnr@gmail.com

[1] European Commission (2001); Birch (2003); Rego e Pina e Cunha (2005)

[2] www.portugal.gov.pt/…/mou_pt_20110517.pdf

[3] www.mcsp.min-saude.pt/estatistica

[4] Manville e Ober (2003) e Gratton (2004)

[5] Rego e Pina e Cunha (2009)

[6] Platterson (2001)

 

 

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