Esta história não é do meu consultório. É de um consultório que povoa as minhas memórias de infância. A memória guarda a força do granito do edifício e da porta de ferro da entrada e a leveza desses dias – já longínquos -, em que subia pela mão dos meus pais a rua de Sá da Bandeira, no Porto. Era o dia da consulta de “rotina” na minha Pediatra e era um dia saboroso.
Lá estava eu – teria 8 ou 9 anos – sentada nas cadeiras da sala de espera, a observar os desenhos e as imagens das personagens da Disney que ocupavam as paredes, algumas já com um ar bastante antigo. As portas dos consultórios tinham o nome do médico inscrito, eram brancas e tinham um vidro fosco, que não permitia ver para dentro. A cada abertura de porta, uma nova ânsia entre os presentes na sala – Será a minha vez? ou Ah, não, a médica veio só dar um recado na secretaria… – deviam ser os pensamentos mais frequentes. A minha pediatra atrasava-se bastantes vezes. Eu parecia ser a única pessoa impossível de afectar por qualquer atraso. Poderia adivinhar-se uma já solidariedade médica, pela carreira que viria a escolher, mas creio que para mim era tão só um prolongamento de um dia feliz.
E então, chegava a minha vez. Sentia um nervoso miudinho, como se estivesse nas minhas mãos mostrar cabalmente a minha saúde e sair-me bem nas pontuações das escalas. Então, discretamente, concentrava-me na tabela optométrica. Confirmar todas as letras para não falhar nenhuma. [Que tolice, penso eu, volvidos todos estes anos.] Mas, depois esquecia a tabela, para me entusiasmar com a parafernália toda, de que então não conhecia o nome: o otoscópio, o oftalmoscópio, o estetoscópio. E concentrava-me nos gestos da minha pediatra a observar-me, a auscultar-me, as mãos à procura de um qualquer gânglio. Havia algo de ritual e de sagrado naqueles minutos. E hoje sei que nesses silêncios também se contrói a relação e confiança com os nossos pacientes.
Estava tudo bem. Hora de ir lanchar ao café. Outra vez as mãos dos pais. Outra vez a rua. Outra vez o granito.
Por Sofia Baptista
[Dedico este texto aos meus pais e à Dra. Alexandra Almeida, minha pediatra]